O Milagre do Roteiro Criativo

Este é um antigo texto que me ajudou muito a criar algumas coisas.
por Elza Keiko
http://elzakeiko.deviantart.com
Vendo a produção de roteiros por aí, não posso deixar de me surpreender com a quantidade de lugares comuns. E olha que não estou me referindo apenas a produções independentes de fanzines e fanficts, mas também àquelas produções ditas profissionais que possuem recursos para pagar bons roteiristas.
O que está acontecendo? Porque quase todos recorrem ao famigerado "escolhido", aquele que irá salvar o mundo da destruição com sua mensagem de coragem e força? Porque quase todos recorrem à solução fácil do Mal 100% mau e do bem 100% bom?
Acredito na força do herói mítico, escolhido para liderar seu povo e vencer obstáculos absurdos. Essas histórias são contadas desde que o homem é homem e nos a juda a ter força e a nos inspirar a enfrentar dificuldades diárias e manter a unidade cultural. Não o menosprezo de forma alguma e entendo sua função social. De Jesus à Hércules, de Sidarta a Moisés, não importando se não relatos veríticos ou fictícios, todas as narrativas míticas têm grande força em suas mensagens e até hoje nos ajudam a compreender e superar melhor o mundo em que vivemos.
No entanto, muito me espanta que tantos roteirista não procurem extrapolar o óbvio. Quer falar do herói? Tudo bem, afinal todos sabemos que a história do herói é boa, mas ela já foi escrita, explorada, reinventada, mudaram seu uniforme, mataram-lhe os entes queridos, fizeram-no ter um pacto com o demo, jogaram um monte de mulheres em seu colo, o impossível já rolou com o infeliz arquétipo.
Espero que entendam que eu não estou falando apenas de super-heróis americanos, mas também de heróis do mangá, heróis do cinema... fulanos que enfrentam com êxito situações difíceis, enfim. Quem não conhece dezenas de histórias de garotos transportados para uma terra de fantasia? E aquela história do grupo de amigos que precisa seguir uma jornada para salvar a paz no mundo? E os guerreiros uniformizados que sempre falam o nome de seus golpes? Sem falar do herói tímido que vê sua vida transportada quando lindas garotas passam a lhe fazer companhia.
Mas agora, que tal dar um pouco de dimensão a esse herói? que tal explorar uma cultura complexa como pano de fundo? Que tal desenvolver as relações afetivas do herói com o mundo? Que tal conferir-lhe
humanidades e fraquezas, talvez até defeitos? Porque não fragmentar a história? Porque não contá-la através de pontos de vistas alternativos? Porque não descontruir tudo e contar de trás para frente?
E não é só com narrativas heróicas que se percebe a crise que se abate sobre o universo criativo. A previsibilidade sem sal está presente em comédias românticas, em ficções científicas, em adaptações históricas. Para onde quer que dirijamos nossas atenções, a paisagem parece ser a mesma.
Tudo bem, admito que existe uma estrutura básica para se contar qualquer história, que consiste em:
[1] apresentar os personagens;
[2] apresentar o ambiente;
[3] desenvolver a relação entre os personagens e o ambiente;
[4] apresentar um problema;[5] crescer no problema até chegar ao ápice;
[6] conduzir até a solução dos fatos e ao encerrametno da história.
Mas mesmo essa previsibilidade pode ser trabalhada. Os personagens geralmente são as vedetes, não sem razão, uma vez que o carisma deles pode ser o único elemento capaz de salvar uma história mala. Trabalhá-los bem, seja no comportamento, seja na aparência, seja na relação com os outros personagens, seja na relação dele com seu íntimo ou com seu desafio, pode deixá-lo mais interessante e profundo, como por exemplo em Karekano - Kareshi Kanojo no Jijyo, de Masami Tsuda, em que não existem heróis ou vilões, mas onde todos os personagens são mostrados em sua qualidades e fraquezas, despertando inevitavelmente nossa compaixão.
O ambiente, muitas vezes levianamente deixado de lado, é um elemento que pode dar muita força para a narrativa, seja com excesso de referências e detalhes (Tolkien, por exemplo, ambientou toda a sua obra num mundo com relevo definido, descrições detalhadas de costumes e hábitos, árvores genealógicas dos principais personagens, além de criar os idiomas!) seja como apenas os detalhes básicos em uma história minimalista. Uma sala sem móveis, portas ou janelas pode ser um cenário incrível para Moëbius, que precisa sequer de palavras para nos comover.
A relação entre os personagens e entre os personagens e o ambiente é outra coisa que pode render boas sacadas, piadas originais, reforçar os dramas e, com isso, enriquecer muito a história no geral. Aliás, essa é a grande força de boa parte da obra de Will Eisner, que pode ser sentida em New York a Grande Cidade.
O problema, dilema, impasse, obstáculo a ser vencido pelo(s) protagonista(s) é outro elemento muito valorizado pelos roteiristas e, não raro, acaba ganhando contornos grandiloqüentes ao ponto de estragar a história, como uma melancia no pescoço pode estragar a composição de uma roupa. No entanto, para dizer a verdade, o problema nem precisa existir concretamente, como por exemplo em Dom Casmurro, de Machado de Assis, em que uma traição que não se sabe que aconteceu ou não rendeu um dos romances mais incríveis de nossa literatura.
É muito comum encontrar histórias de pessoas comuns que enfrentam problemas medonhos, como Gen, pés descalços (Keiji Nakazawa), que narra os horrores de um sobrevivente ao bombardeio nuclear de Nagazaki. Mas também pode ser muito interessante imaginar histórias de pessoas extraordinárias que precisam enfrentar problemas risíveis, com em Morte, o preço da Vida, do roteirista Neil Gaiman, em que a própria Morte precisa viver um dia por ano na Terra como uma pessoa mortal para desempenhar melhor seu papel nos dias restantes do ano.
texto original no site:
http://www.centraldequadrinhos.com/v4/Por%20dentro/Artigos/roteiro_criativo01.htm
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