O que é e o que pode ser...

"Para o nosso olho é mais cômodo, numa dada ocasião, reproduzir uma imagem com frequência já produzida, do que fixar o que há de novo e diferente numa impressão: isto exige mais força, mais "moralidade". Ouvir algo novo é difícil e penoso para o ouvido. Ouvimos mal a música estranha. Quando ouvimos uma música estrangeira, tentamos involuntariamente modelar os sons em palavras que soem familiares e próximas: foi assim que, em tempos passados, o alemão ouviu a palavra arcubalista e a transformou em armbrust [balista].
Também os nossos sentidos são hostis e relutantes para com o novo. E já nos processos mais "simples" da sensualidade predominam afetos como medo, amor e ódio, sem esquecer os afetos passivos da indolência. - Assim como atualmente um leitor não lê todas as palavras (e muito menos as sílabas) de uma página - em vinte palavras ele escolhe umas cinco ao acaso, "adivinhando" o sentido que provavelmente lhes corresponde -, tampouco enxergamos uma árvore.
Mesmo nas vivências mais incomuns agimos assim: fantasiamos a maior parte da vivência e dificilmente somos capazes de não contemplar como "inventores" algum evento. Tudo isso quer dizer que nós somos, até a medula e desde o começo - habituados a mentir. Ou para expressá-lo de modo mais virtuoso e hipócrita, em suma, mais agradável: somos muito mais artistas do que pensamos.
Numa conversa animada, com frequência vejo tão nítido e bem delineado o rosto da pessoa com quem falo, segundo o pensamento que ela exprime, ou que acredito ter evocado nela, que esse grau de nitidez ultrapassa em muito a força de minha visão - então a sutileza no jogo dos músculos e na expressão dos olhos deve ter sido inventada por mim. Provavelmente a pessoa fazia outra cara, ou talvez nenhuma"


Nietzche, Friedrich - Além do Bem e do Mal (Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft), 1886.

Comentários

  1. Vc me surpreendeu, conseguiu citar Nitschie sem ser chato, isso é muito bom.

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  2. Opa! Bomfim no meu blog! Ehuehehehe.
    Valeu! O segredo é ter citado uma parte não tão chata do livro (e são muitas... ¬¬).

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